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Causos de motor home
 
O Resgate do Cabo
Possuo um pequeno motor home, onde eu e minha esposa viajamos por este nosso imenso e belo país. Considerando que também presto serviço como Engenheiro de Segurança no Corpo de Bombeiros da minha cidade, eventualmente procuramos abrigo estratégico em quartéis, onde os colegas, de tão nobre profissão, sempre nos recebem de forma elogiável.
Em alguns casos, como o relatado, as instalações são muito precárias, com diminuto efetivo, poucas viaturas, equipamento obsoleto e ineficaz. Elementos, estes, agravantes a qualquer sinistro e que parecem ali estar para testar a capacidade inventiva destes abnegados heróis.
Havíamos chegado ao entardecer, numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, em pleno e rigoroso inverno.  Estacionamos o motor home ao lado do minúsculo “quartel”, característico da citação, cujas viaturas (uma velha Caravan e um obsoleto Mercedes 1113) aguardavam em rampa a possibilidade de “pegar no tranco”.  Lá havia uma humilde salinha de recepção com mesa e duas cadeiras, um apertado e indigno alojamento com dois catres e dois colchonetes no chão.  Ao lado, uma cozinha com fogão central à lenha, confortavelmente aceso e cinco bancos ao redor.  Três soldados, um cabo e um amigo deliciavam-se a sorver o quente chimarrão, contando “causos” na comodidade térmica do ambiente, aguardando a troca de turno e rogando aos céus para que nenhuma emergência noturna viesse alterar aquela tranqüilidade.
Após as apresentações de praxe, liguei o cabo elétrico (extensão) do motor home na cozinha, (única tomada de energia funcionando), tomei um chimarrão com os presentes e, graças ao frio e chuva fina, recolhi-me à nossa pequena casa rodante, onde jantamos e fomos dormir, para seguir viagem no início do dia seguinte.
Pela manhã, dirigi-me à cozinha do “quartel”, onde outra equipe que havia substituído a anterior estava absorta em seus “causos”, mitigando o frio no quente mate amargo e com os pés sob o fogão fumarento.  
Como eu não havia sido apresentado a esta nova turma e, a informação da anterior possivelmente sido incompleta, um soldado levantou-se, surpreendido ao se flagrar invadido no ambiente intimo, e inquiriu-me, severamente:
-“O que o senhor deseja?”
Esbocei um sorriso amistoso e, em patente ingenuidade, não imaginando uma possível segunda interpretação, respondi:
-Vim apenas resgatar o “cabo”.
Ao ouvir a inesperada sentença, o cabo (bombeiro) deu um salto de trás do fogão e, aparentando a mais inesperada situação, incrédulo, limitou-se a me encarar sem nada dizer.
Depois das explicações, gargalhamos juntos ao redor do fogão.  Certamente eles terão mais um “causo” para as próximas trocas de turma.
Darlou D’Arisbo
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As voltas e as idas da Vida – minha 1ª viagem de motorhome
Florianópolis, 26 de novembro de 2005. Entre o folhear de uma e outra revista no consultório geriátrico volto a pensar: mais quatro anos chego aos 60 e me aposento. O que fazer então? Como efetuar a transição? De repente, uma foto chama a atenção. Nela, um campo gramado e embaixo de uma árvore um motor home. Enquanto leio a matéria lembro que há uns 15 anos atrás pensei seriamente: em vez de apartamento, comprar e morar numa casa sobre rodas. Ficou como mais um sonho de um quarentão.

Olho, um a um, os seis pacientes que estão na sala. Olho a secretária que, pela quinta vez, me olha com olhos que se desculpam pelo atraso do médico. Procuro outra revista. Abro e leio “sobre dar um tempo na vida, fazer um período sabático”. Interessante, mas quem tem coragem de sair pelo mundo, desgarrar-se de tudo por um tempo? Ah! se eu tivesse 30 anos menos…

Impaciente pela minha paciência em estar ali passivo, levantei-me mais uma vez para tomar água e não sei por que lembrei-me de um poema do Raul Seixas que dizia assim: “Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dente, esperando a morte chegar…”. Voltei ao meu lugar e na mesma revista uma reportagem sobre como registrar uma viagem em aquarelas. Completou-se a trilogia: motor home – período sabático – aquarelas.

08 de Agosto de 2006. Reviso pela milésima vez a lista de tarefas e finalmente embarco, para uma viagem solitária de quatro meses pelo Brasil, num pequeno furgão transformado em Casa Andante. Aposentadoria? O que fazer depois? Como completar a transição? Xi… com esta correria toda esqueci de pensar sobre isto.
Nesta aventura desci, margeando durante 20 dias o Velho Chico. De seu nascimento na Serra da Canastra, em Minas, até sua primeira agonia em Xique-Xique, na Bahia, atravessei-o 15 vezes, sendo sete por balsas. Depois, por entre a “ventarada” do litoral e a secura do agreste, fui de Salvador a Macapá. De lá voltei, subindo até o Planalto Central e descendo pelo Vale da Ribeira até chegar a Florianópolis novamente.

Foram 20 mil quilômetros e 1.564 fotos. Vi inscrições rupestres de 10 mil anos atrás no Piauí e mergulhei na Baia dos Golfinhos em Fernando de Noronha. Caminhei pelo Vale da Lua na Chapada dos Veadeiros e subi em montes de sal em Mossoró. Encantei-me com o congado e devotei-me com as novenas. Comi açaí com peixe frito, tapioca com camarão, doce de caju e tacacá. Vi o sol se pôr em Jericoacoara e vi o sol nascer ao norte da linha do equador. Dormi em cama e rede, em campings, postos de combustíveis e praças públicas. Conversei com caminhantes e caminhoneiros, com brasileiros e estrangeiros.

O que mais chamou atenção? Diante de tantas peripécias parece difícil responder, mas sem dúvida uma foi ver uma centena de pessoas optarem por balançar durante 30 horas num barco entre Belém e Macapá à uma confortável hora de avião. Antes que você comece a achar explicações “bem racionais” informo: a passagem do barco é quase 30% mais cara que a do avião e para nós que aprendemos que “tempo é dinheiro” alguém, que não seja um turista, gastar além de tempo, também dinheiro, é uma dupla loucura. Medo de avião? Um pouco, disseram alguns, mas a grande maioria (que em outras ocasiões já voou) diz que prefere o barco porque dá mais tempo “para ficar vendo o rio e as margens do rio”. Dá mais tempo “para conhecer e conversar com outras pessoas” e, no barco, as conversas se estendem sem tempo para terminar. A todos estes tempos eu ainda acrescentaria que “deu tempo até para rabiscar minhas primeiras aquarelas”.  

16 de Janeiro de 2007. Quer saber o que estou fazendo agora? Preparando, sem pressa, minha próxima viagem. Afinal, ao contrário do que muita gente pensa, não é o tempo que passa. Somos nós que – de um jeito ou de outro – passamos por ele.
Roberto Luiz Colaço